A autorregulação da mídia
04 de dezembro de 2010 | 0h 00
Miguel Reale Júnior - O Estado de S.Paulo
Estamos submersos no mundo da informação, alvejados continuamente por notícias ou torpedos, numa rede comunicacional em que se projeta a prevalência da mídia, que passou a conformar o nosso modo de ser. O virtual assume papel relevante na realidade, pois as formas de conhecer e avaliar deixaram de ser fruto da leitura e da reflexão para se alicerçarem unicamente na informação rápida, no conhecimento por tiras, retirado das comunicações que são enviadas em processo contínuo de transmissão durante todo dia, compartilhadas por todos.
Dessa forma, a assunção de convicções individuais, bem como o silêncio e a solidão cederam passo a uma posição passiva de recepção contínua e coletiva de comunicações, com aceitação indiscutida da informação urgente trazida pelos órgãos de imprensa. Neste mundo em rede, vive-se com a mídia e pela mídia, como diz Manuel Castells. E o grande meio de informação ainda é a televisão, em especial no Brasil, malgrado o crescimento da internet. Mas o que é a televisão?
A televisão pode ser uma via autoritária, na medida em que penetra nossa existência em todos os instantes, de manhã até a noite. Não há mais horário para ver televisão, vê-se televisão a todo tempo. Não se escolhe um programa de televisão, liga-se a televisão, cuja mensagem é recebida enquanto se conversa ou durante o jantar. Há um ato automático de ligar a televisão que cria um monólogo. Assim, a televisão impõe a lei do mínimo esforço e gera uma audiência preguiçosa. A televisão é uma imposição de modos de ser, de pensar, que vão sendo introjetados imperceptivelmente.
Por outro lado, a programação tem de estar de acordo com o mais baixo denominador comum, pois assim haverá uma grande receptividade com tranquila admissão das ideias transmitidas, de forma a crescer o índice de audiência. Os programas de baixo nível, nada educativos e exploradores de anseios de sucesso segundo o modelo dos "famosos", são fenômenos graves, pois hoje não mais têm força os emissores simbólicos tradicionais: a religião, a escola, o sindicato, a família. Concentra-se a capacidade de transmissão simbólica nos meios de comunicação, com fácil penetração dos estereótipos forjados pela mídia em campo aberto, dada a desavisada recepção.
Assim, o rádio e a televisão têm um impacto extraordinário porque expressam manifestações de cunho valorativo, mesmo no campo político, e modelam a opinião pública. Mas, em que consiste a opinião pública?
A opinião pública não é a opinião de todos nem é a opinião da maioria. A opinião pública é opinião daquele que é o seletor da notícia e o fautor da notícia.
Não se trata apenas de escolher a notícia, mas especialmente de escolher como revelar, como comunicar a notícia. Importante é o que se denomina gate keepper, ou seja, aquele que seleciona a notícia e decide como deva ser transmitida. Assim se forma a opinião pública.
Essa opinião "pública" é retroalimentada, ou seja, o público, após ser manipulado, é consultado sobre a opinião que lhe foi enviada por meio de sondagens de opinião pública. E o público, em resposta, repete a opinião que lhe foi revelada. Essa opinião "pública" passa a ser, então, legitimada pela resposta positiva da sondagem. Portanto, há um círculo vicioso: quem cria a notícia depois busca legitimar a notícia por via de sondagens que apenas confirmam o que os seletores e emissores de notícias transmitiram. A opinião veiculada pela mídia ganha, assim, uma legitimação que nada mais é do que uma mistificação, por meio da qual a transmissão recebe um cunho de veracidade e uma aprovação.
A notícia selecionada e transmitida sob determinado viés, sob uma perspectiva, legitima-se e alcança ares de objetividade e de seriedade. Deixa de ser uma visão parcial ou de alguém individualizado para ser a "opinião pública".
Toda essa digressão importa para verificar se a mídia, em especial o rádio e a televisão, por sua imensa força, deve estar sujeita a regulação para garantia do interesse geral na preservação de outros valores constitucionais, como a veiculação de opiniões diversas, o direito à informação veraz, a proteção às crianças e aos adolescentes, mormente em vista da exploração do sexo e da violência, a privacidade, a honra.
Tome-se a curiosa coincidência do ocorrido quando o dono do SBT, como controlador do Banco Panamericano, em via de liquidação pelo Banco Central, veio a estar com o presidente da República, no auge da crise do Panamericano, durante as eleições, para logo a seguir a emissora dar notícia truncada, minimizando a agressão sofrida pelo candidato de oposição. Tal demonstra a necessidade de regulação, mas também mostra que jamais pode estar nas mãos do poder político, como se pretende na proposta emanada da 1.ª Conferência Nacional de Comunicação.
Em grande parte dos países democráticos há formas de controle, porém prevalece a autorregulação, tal como no Canadá, na Austrália, na Inglaterra. A autorregulação, a meu ver, cabe ser exercida por via de um ombudsman, dotado de independência e inamovibilidade durante seu mandato, como um canal aberto com os destinatários do meio de comunicação. Deverá este ouvidor pautar sua ação em código de conduta do órgão de imprensa a ser registrado em conselho constituído segundo lei federal. Este conselho, constituído por representantes dos órgãos de imprensa, bem como por jornalistas e, principalmente, por membros da sociedade civil, teria por fim examinar e admitir os códigos de conduta e analisar se o ombudsman de cada órgão está exercendo com amplitude e liberdade o seu mister.
Desse modo, conciliam-se o direito de liberdade de expressão e o direito de preservação dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, como expressa a nossa Constituição no artigo 221, IV. Faz-se, assim, a conjugação, e não a colisão de direitos.
ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA
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