domingo, 10 de outubro de 2010

quem não já passou por isso?

Cadeado no telefone

09.10.2010 - COLUNA DAS ANTIGAS - JORNAL O PVO.

 
Por índice de canelice, ou pertença canelau, entenda-se um gesto, costume, modo de ser, vestir-se, falar determinada prosopopeia odoriqueana... Ou qualquer movimento que ouse reinventar, adaptar ou macaquear o cotidiano em seus fazeres, comeres e jeito de se relacionar privadamente ou no meio da rua, em pleno exercício de vizinhança fuxiqueira.

Pois. Por observação, experimentação própria, tempo de idade que me vai e ouvir dizer, anotei algumas artimanhas do cotidiano. Se você se identificar, tudo bem. Somos feito de tempo, heranças e acontecências. E vamos refazendo.

1. Você era dessas ou desses (ou sua mãe) que colocava um cadeado no disco do telefone para que os filhos ou a empregada não gastassem ligações?

2. Botava água no shampoo para render mais?

3. Enrolava bombril na antena da TV para conter o chuvisco ou deixar de passar aquelas listras chatas?

4. Comprou no camelô ou no Romcy aquela tela multicolorida para transformar a televisão preto e branco?

5. Chamava pilha de rádio de “elemento” e a colocava no congelador para que recarregasse?

6. Quarava no quintal, aos domingos, tendo passado Coca-cola ou mel de urucu na pele para se bronzear?

7. Enrolava as bolas de Natal em algodão para o próximo ano e as guardava em caixas de sapato embaixo da cama de casal?

8. Tinha uma radiola (depois som) CCE e ficava com o dedo no REC+PLAY esperando para gravar as dez mais da semana numa fita TDK?

9. Era fã da “Dragão da o Bis, o som maior do sucesso” e de Samanta Marques: “Você liga e participa”.

10. Tinha mania ou toque de colocar papel de presente usado entre o estrado da cama e o colchão?

11. Enganchou a pinta no zíper e passou vergonha na frente da costureira da família?

12. Levou na merendeira da escola um suco quente de limão ou laranja acompanhado de um pão com ovo gelado. E desejava comprar, sem poder, na cantina do colégio?

13. Tinha vergonha dos outros saberem que raramente a família comia carne. Mas toda a rua fuxicava que se comprava fiado na bodega carne de lata, ovos e sardinha?

14. Dava o número do telefone da vizinha para recados. E, geralmente, as pessoas ligavam em horas inconvenientes. No almoço do vizinho, na hora da novela ou quando o pessoal já estava atando as redes pra dormir?

15. Colocou bacia debaixo das redes para aparar o mijo de meninos e meninas que se urinaram até os 12 anos de idade?

16. Teve “dordói” e, de manhazinha, a avó amornou água para tirar a remela dos olhos? Pegou papeira, catapora, sarampo, curuba?

17. Bebeu água de carroça, colocada no pote com pano para coar pregos e micróbios?

18. Viu muitas vezes o avô pagar um bêbim para esgotar a fossa cheia do quintal?

19. Puxou água da cacimba ou na alavanca da bomba d´água da vizinha generosa?

20. Chupou dindim de batata, Nescau, tamarindo, abacate ou coco queimado?

21. Comeu bolo Sol, da Santista, aos domingos assistindo Sílvio Santos ou Chacrinha?

22. Teve de lavar o fusquinha depois de chegar da Praia do Futuro, mesmo com a morrinha do sol quente e o calção cheio de areia salgada?

23. Colocou o biquíni num saco de mercantil, porque estava com preguiça de lavar, e o bicho apodreceu no roupeiro?

24. Atravessou numa canoa lotada, com os pais e a récua de irmãos, para o outro lado da Barra do Ceará?

25. Assistiu umas cem vezes na Sessão da Tarde: Simbad e o olho do tigre, Inimigo Meu, A lagoa Azul, Fúria de Titãs e a A floresta das Esmeraldas”?

26. Encerava o mosaico da casa todos os sábados e quando ganhou uma enceradeira do marido, sonhou com uma casa de chão de taco?

27. Comprou uma residência de conjunto pelo Bradesco e não conseguiu pagar?

28. Tem dois celulares para baratear custos ou porque diz que um é comercial, de trabalho, e o outro é particular?

29. Compra a última novidade tecnológica ou pede alguém que vai aos EUA fazer um contrabandozinho do bem?

30. Não consegue formular opinião sem arrotar citações de filósofos, sociólogos, ou vive dizendo que deu no Le Monde ou na Folha?

31. Foi à festa e quando foi embora pediu para levar um pratinho de canudinhos e um pedaço de bolo para o café da manhã do outro dia?

32. Adorava ir ao aeroporto velho, subir na estátua do vaqueiro e depois se despedir, chorando feito besta, de alguém que ia ao Rio de Janeiro?

33. Quando criança andou, que abusou, de Brasília branca porque o pai era médico e não queria comprar outro carro?

34. Foi a uns 15 anos brega ou a um casamento chato e chegou lá fedendo a gasolina por causa do fusquinha que só pegava no empurrão?

35. Suou, se arrepiou, amargou a boca com uma daquelas dores de barriga fenomenais em lugares inapropriados. E lá, não tendo papel higiênico, foi obrigado a usar a meia Hering, a calcinha DelRio ou a cueca Zorba?

Como falei, se você se identifica com algumas dessas cotidianidades, não se apoquente. O estirão é ainda maior. Somos feitos de travessias, lugares, gente e tempo.

Demitri Túlio
demitritulio@opovo.com.br