quarta-feira, 20 de julho de 2011

UMA REFLEXÃO

06/07/2011 - 06h44

Receitas para explicar o mundo

Qualquer criança minimamente curiosa já deve ter se perguntado como se faziam as operações matemáticas na Roma antiga. Quem hoje sabe que V+V=X e XX-II=XVIII é porque fez a conversão de cabeça ou usou uma calculadora para ajudar. Por mais os números romanos sejam um código de fácil compreensão, sua operação não faz o menor sentido.
Nem poderiam. Na época em que foram usadas, essas letras-números não serviam para calcular. Quem perguntasse quanto valia X/V receberia um ar de estranheza tão grande quanto alguém que hoje perguntasse qual o valor de um J dividido por um H.
Durante muito tempo, em muitos países, números eram letras que, combinados, geravam palavras. Eles não serviam para fazer operações. Estas eram realizadas em ábacos, que usavam pedrinhas (em grego, calculi), presas a fios. O termo cálculo surgiu dessas primeiras calculadoras. Em Portugal, os ábacos eram feitos com um tipo de bijuteria, usada para fazer colares e cortinas de contas. E, naturalmente, contas.
A ideia simples e brilhante de inventar um novo tipo de símbolo operacional, usado tanto para mostrar um número quanto para calculá-lo surgiu no interior da Índia e foi, aos poucos, popularizada no império Persa. Lá pelo século VIII, em Bagdá, o astrônomo, geógrafo e matemático Abu Abdallah Muhammad al-Khwarizmi se empenhou na tradução e organização desses símbolos, ajudando a criar um sistema de números e posições que chamou de Álgebra, inspirado nos nomes de suas duas primeiras equações.
A contribuição de al-Khwarizmi foi (é) tão importante para o desenvolvimento da ciência que até hoje derivam de seu nome a palavra utilizada para descrever esse número operacional - algarismo - e também de outro termo que só se tornaria popular XIV séculos mais tarde: o algoritmo.
Algarismos e algoritmos trazem em sua natureza uma percepção que ajuda a compreender as forças que compõem o mundo e suas principais interações: um conjunto de regras e relacionamentos entre seus elementos. Muito mais simples e lógico do que um código místico, religioso ou hermético para explicar os mecanismos do universo, essa sintaxe lógica fundamentou o pensamento ocidental e o que hoje se conhece por tecnologia.
Faz sentido: qualquer cozinheiro sabe que um bolo bem feito não é resultado de um milagre ou do acaso, mas da combinação mensurada e cuidadosa de seus ingredientes, na quantidade e momento exatos. Uma receita, como uma partitura musical, pode sofrer variações múltiplas de tom e ênfase, mas em sua essência é um conjunto de instruções. Um algoritmo, enfim.
Por mais que a redução a funções e instruções possa soar mecânica, simplória e determinista, ela é exatamente o contrário. Se não há muito mérito em se reproduzir uma receita, criá-la ou modificá-la, mesmo que minimamente, são exemplos magníficos da criatividade humana.
Durante muito tempo físicos, astrônomos, químicos e cientistas em geral se empenharam em desenvolver fórmulas simbólicas para explicar o mundo. Segundo muitos, as divisões mais elevadas da matemática mostrariam uma linguagem avançada, impossível de ser expressa em palavras, que ajudaria na compreensão das enormes complexidades escondidas nos mecanismos do universo.
Hoje, que há redes de computadores com grande capacidade de cálculo por toda parte, percebe-se que o mundo é complexo demais para que seja explicado por fórmulas. Para compreendê-lo, novos pesquisadores propõem uma ciência que substitua as estruturas matemáticas por redes de instruções que, como o DNA, seriam ao mesmo tempo estruturadas e maleáveis.
A tecnologia que surgir dessa nova ciência é promissora: ela poderá fazer com que as máquinas parem de se comportar como crianças mimadas e passem a fazer sentido sem demandar tanta atenção. Seria ótimo.
Luli Radfahrer Luli Radfahrer é Ph.D. em Comunicação Digital pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP, onde é professor há 18 anos. Trabalha com internet desde 1994 e já foi diretor de algumas das maiores agências de publicidade do país. Hoje é consultor em inovação digital, com clientes no Brasil, Estados Unidos, Europa e Oriente Médio. Mantém um blog com seu nome www.luli.com.br, em que discute e analisa as principais tendências da tecnologia. Escreve quinzenalmente no caderno Tec da Folha e na Folha.com.

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