02/10/2011 - 08h05 
 Juca Kfouri contra o feudalismo da bola 
GUILHERME BRENDLER
DE SÃO PAULO 
Que Juca kfouri, 61, é o mais radical crítico à Copa no Brasil em 2014 não é novidade. Seja em sua coluna na 
Folha,  em seu programa na rádio CBN ou na TV a cabo (ESPN), são diárias as  suas declarações contra a política da Fifa e à CBF de Ricardo Teixeira. 
Na edição da revista "Interesse Nacional" [Ateliê, 86 págs., R$ 25], que  chega às livrarias no dia 5 deste mês, Kfouri expõe suas razões em  argumentação próxima à de artigo acadêmico, buscando a adesão de um  público mais afeito às querelas diplomáticas ou da política partidária  do que às do futebol. 
Na edição anterior da mesma revista, publicada em abril, o ex-presidente  Fernando Henrique Cardoso publicou o polêmico artigo que dizia que o  PSDB deveria se aproximar da classe média e não disputar o "povão" com o  PT. 
"Se 10% do seleto público da revista passar a acompanhar as questões políticas do futebol, será maravilhoso", disse Kfouri à 
Folha.  Na entrevista a seguir, concedida em sua casa, ele repassa alguns dos  pontos do artigo "A Copa do Mundo é Nossa?" e não esconde a sua decepção  com figuras como Lula, o PT e outros. 
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Folha - O que está em jogo para o Brasil na aprovação da Lei Geral da Copa, que define as regras para sediar o evento?
Juca Kfouri - Quando um país se candidata a um Mundial, ele já  sabe que vai entregar a sua soberania. A isenção de impostos, os  convidados VIPs, a possibilidade do marketing de emboscada, a bebida  alcoólica no estádio. Tudo isso já está no caderno de encargos. 
Na Alemanha, em 2008, com exceção da cidade de Dortmund, onde o Partido  Verde brigou para cacete e conseguiu fazer com que se vendesse também a  cerveja local, em todos os estádios era possível comprar apenas  Budweiser. Isso é uma ofensa no país da cerveja servir aquele xixi de  caveira. 
Qual é o risco de o Brasil deixar de ser sede da Copa de 2014?
O risco que o Brasil corre é de a Fifa se arreglar com a Inglaterra, que  está incomodando uma barbaridade, e entregar a Copa a eles. 
Gostaria de ver isso. Já ocorreram desistências, como a Colômbia, que  desistiu dois anos antes de realizar a Copa de 1986. Acho que o Brasil  não vai desistir, mas a Fifa pode, sim, entregar a Copa do Mundo para a  Inglaterra se o governo dificultar muito a vida deles. 
Agora, devido às pretensões brasileiras de ter um lugar no Conselho de  Segurança da ONU, é difícil imaginar que o Brasil deixe isso acontecer.  Penso que a presidenta Dilma vai endurecer o quanto ela puder, mas  cederá tudo aquilo que for inegociável para a Fifa. 
A indicação do [deputado federal] Vicente Cândido (PT-SP) como relator  da Lei Geral da Copa mostra que a presidenta não está com tão  inflexível. Cândido é também vice-presidente da Federação Paulista de  Futebol e sócio de Marco Polo del Nero, homem muito ligado a Ricardo  Teixeira, presidente da CBF e do COL [Comitê Organizador Local da Copa  do Mundo]. 
Eu exultaria se o Brasil mandasse a Fifa às favas. Seria uma  demonstração de dignidade, de soberania. Acho que seria um exemplo e que  dinamitaria a Fifa. Mas é óbvio que é tudo suposição. É muito difícil  que isso ocorra. 
Você está desiludido com a política do PT em relação ao futebol?
Já tive diversas desilusões na vida. Eu achava que o Lula romperia com  esse pessoal do futebol. Hoje estou convencido de que o governo do PT  não é um governo de rupturas, não faz rupturas. Eu vi o Lula dizer que  nunca mais o jornalista Juca Kfouri diria que o torcedor no Brasil era  tratado como gado, que "a presença dele aqui é uma homenagem a todos os  jornalistas que foram processados, tiveram credenciais negadas por essa  cartolagem que infelicita o Brasil". Isso foi em 2003, na assinatura do  Estatuto do Torcedor, a primeira lei que ele assinou. Não havia um único  cartola na cerimônia. 
Seis meses depois, ele estava de braços dados com o Ricardo Teixeira  naquele jogo no Haiti. Que foi lindo, uma história muito bonita. O poder  de sedução da cartolagem brasileira é algo que não deve ser desprezado.  Pergunte ao Ricardo Teixeira de quem ele gosta mais: do Lula ou do  Fernando Henrique Cardoso? 
Não é curioso? O Teixeira detesta o Fernando Henrique. Eles não têm uma  foto juntos. No dia que voltaram da Ásia campeões do mundo, em 2002, o  FHC condecorou o Ricardo Teixeira na sala dele, sem fotógrafo. Com o  Lula tem um milhão de fotos, de braços dados, de camisa aberta, tomando  cerveja, de todas as formas. 
Você é um dos raros corintianos contra a construção do Itaquerão.
As pessoas me falam: "Você é contra o Itaquerão, pô! Que tipo de  corintiano você é?". Não se está discutindo se o clube merece ou não um  estádio. O que se discute é que a operação, em si, é um escândalo. Numa  cidade como São Paulo você achar que um estádio como o Morumbi não serve  para sediar seis ou sete jogos da Copa do Mundo no Brasil é loucura. 
Se os alemães tivessem demolido o Allianz Arena, em Munique, tudo bem.  Mas a Alemanha pode. Nós não. Cinquenta anos depois descobriram que o  Morumbi não serve para jogo de futebol? Já se fez tudo que é competição  aqui: final de Libertadores, eliminatórias de Copa, Mundial de Clubes da  Fifa. 
Mas seriam necessárias reformas.
Claro, o Morumbi não é o ideal, mas é factível. Como o Ellis Park foi  factível para a Copa na África do Sul, em 2010. Agora, em Johannesburgo  também cometeram excessos. Fizeram o Soccer City, a 4 km do Ellis Park,  no Soweto. Qual era a justificativa: polo de desenvolvimento. Aqui, polo  de desenvolvimento! [fazendo uma "banana"]. Vá lá ver se é polo de  desenvolvimento. Os caras têm um monumento daqueles, mas não têm o que  comer. 
Na Cidade do Cabo fizeram um estádio maravilhoso, uma das coisas mais  lindas que já vi. Mas desalojaram 4.000 famílias da região. Agora falam  em demolir porque nunca mais ocuparam o estádio. 
Vamos repetir isso no Recife, apesar de o Náutico ter dito que poderá  usar o novo estádio. Mas e em Brasília, Cuiabá, Natal? Nem futebol  profissional há por lá! 
Então o Brasil não deveria nem ter pensado em sediar uma Copa?
Aí é que está. Deveria, sim. Mas para fazer uma Copa do Mundo do Brasil  no Brasil. Não uma Copa do Mundo da Alemanha no Brasil. Claro que o  Brasil pode fazer uma Copa, mas tem que fazer dentro das nossas  possibilidades. 
E qual o maior sentido que faria para o Brasil sediar um evento como  esse? Os legados para as tais 12 sedes. Em Johannesburgo, por exemplo,  eles ficaram com um aeroporto ótimo. Embora tenha sido inaugurado um dia  depois do fim da Copa, está lá, e o povo sul-africano pode usufruir  disso. Tem a linha do monotrilho que liga o aeroporto ao centro rico da  cidade. 
Esse tipo de investimento deveria ser feito aqui. Essa obsessão por  novos estádios é uma reprodução, sem tirar nem pôr, do que se fez  durante a ditadura militar. Os estádios brasileiros nunca tiveram sua  capacidade máxima ocupada, têm 65% da capacidade ociosa nesse Campeonato  Brasileiro. 
Estamos construindo elefantes brancos, reproduzindo o que ocorreu  durante a ditadura em um governo democrático, dito de esquerda, sob a  égide do PC do B. Isso é uma loucura! 
Foi o que ocorreu nos Jogos Pan-Americanos, no Rio, em 2007?
Quando criticávamos o que estava sendo feito em torno do Pan, diziam:  "Esses jornalistas são maníacos por fracasso, são mal-humorados,  antipatriotas etc.". Diziam que fariam o melhor Pan da história e  deixariam três legados para o Rio: o metrô entre Jacarepaguá e a cidade  olímpica, a despoluição da baía da Guanabara, da lagoa Rodrigo de  Freitas. 
Nenhuma dessas coisas foi feita. A ponto de um atleta do remo pescar um  colchão durante a prova. Quem fez a maratona aquática saiu doente. 
Mas os equipamentos esportivos ficarão para a Olimpíada, me diziam. Tem o  Parque Aquático Maria Lenk, lindo, maravilhoso. Coisa de Primeiro  Mundo. Aí vem o COI [Comitê Esportivo Internacional] e diz:  infelizmente, a capacidade de público é aquém da que a gente exige em  provas de natação. Então o Maria Lenk será usado no aquecimento das  competições. Será preciso construir um novo centro para as provas  oficiais. 
A previsão inicial de gastos com o Pan era de R$ 400 milhões. Custou R$ 4  bilhões. E o TCU [Tribunal de Contas da União] diz que houve uma série  de irregularidades, mas que esse é o preço do noviciado, que foi feito  um evento desse porte. É brincadeira! Não estou falando da Copa de 1950.  Me refiro a algo que ocorreu quatro anos atrás. Então, me dê uma razão  para acreditar que vai ser bom, uma razão. 
Você gostou do perfil de Ricardo Teixeira que a revista "Piauí" publicou na edição de julho?
Eu tirei o chapéu para a Daniela Pinheiro, que escreveu o texto. Ela  inclusive me perguntou: "O que eu fiz de errado que você e ele  gostaram?". [Risos] Eu disse que eu continuaria gostando, mas que ele  não gostaria depois de um tempo. Hoje eu sei que ele não gosta mais  porque já levou uma represália da Globo por causa da matéria. 
Ele baixou as calças de um parceiro em praça pública. Isso tem um preço, evidentemente. 
Ele é um ogro. O Ricardo Teixeira é um ogro. A reportagem é um retrato  do que ele é. Um cara que vai a um restaurante cuja grande atração é um  jardim, e ele senta de costas. A menos de 500 metros do hotel onde ele  sempre se hospeda ficam os vitrais do Chagall, e ele nunca foi lá. O  episódio do beliscão na filha. A história do casaco de pele que custa  "só mil euros". 
Passei anos juntando documentos, denunciando, mas nada foi tão demolidor  quanto as frases dele. A reportagem mais demolidora contra o Ricardo  Teixeira nesses anos todos foi a Daniela quem fez, usando só com as  descrições do que ela viu e com as palavras dele. Apenas isso. Nada  mais. 
Você divide o seu artigo em primeiro tempo, intervalo, segundo tempo e prorrogação. Quem vencerá a disputa nos pênaltis?
Adoraria responder: "Nós, os brasileiros, os cidadãos brasileiros. Não a  cartolagem". Vinte anos atrás eu te daria essa resposta, mas hoje eu  sei que nesse filme de mocinho e bandido os bandidos ganham no fim.  Raras têm sido as vezes em que os mocinhos ganham. 
O professor Carlos Wainer, da UFRJ, usou uma expressão esses dias que eu  nunca tive coragem de usar. Ele disse que o futebol brasileiro vive  ainda no sistema feudal.
E é verdade. As federações são feudos, e os cartolas, senhores feudais.  Embora estejam todos milionários, não têm dimensão do quanto podem tirar  desta galinha dos ovos de ouro sem matá-la. Eles querem é raspar o  tacho.
Fonte: www.folhaonline.com.br