sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

coisas que o tempo levou.....

Há tempos eu prometia à minha filha que iríamos ao centro da cidade comer a coisa de que eu mais gostava na infância: pastel com caldo de cana. Não poderia ser em qualquer lugar, tinha que ser no Leão do Sul da Praça do Ferreira. Eu lembrava do sabor e da alegria de comer nos bancos da praça e do quanto era refrescante tomar o caldo gelado depois de andar com minha avó pelas ruas do centro, tão quente. Era quase uma recompensa, um carinho na alma.
Ontem fomos ver o Natal de Luz, um belíssimo e alegre coro de crianças divididas pelas janelas do Hotel Excelsior, o mais antigo da cidade, que fica exatamente na praça do pastel. Ela ouviu meia música e pediu para irmos logo viver o momento tão anunciado.
O Leão do Sul continua pequeno, apertado, lotado, abafado e com o chão mais imundo que já vi, varrido de cinco em cinco minutos. Minha avó dizia que não se varre pés de moça, ou ela nunca vai casar. O Sísifo da limpeza talvez não soubesse disso, saía varrendo os pés, as chinelas e os azulejos até ver o chão limpo de verdade, mesmo que um minuto depois estivesse sujo de novo.
A máquina do caldo agora é mais moderna, de aço, quadrada, prateada. Senti saudades da moenda antiga, que me permitia assistir ao espetáculo da seiva doce sendo extraída da cana, mistério para os meus olhos infantis. A caixa registradora atual imprime a notinha em papel amarelo, não recebemos mais as fichinhas de outrora. Mas a plaquinha com os dizeres “A azeitona do pastel possui caroço” continua na parede.
Era o cenário da felicidade, direto da minha infância para a infância da minha filha. E como foi tão bom entrar ali com ela! Uma das coisas mais lindas da maternidade é dar aos filhos esses pedaços da própria vida, assim, em forma de lembranças. Nem preciso dizer o quanto ela gostou do caldo de cana com pastel. E do quanto fui feliz naquele rompante proustiano de recordar com o paladar.
Apesar de estar no centro de uma cidade desigual, com tanta gente pedindo esmola nas calçadas e morando na rua, ali existe a beleza do que se perpetua – e poucos lugares permanecem tão preservados nessa Fortaleza sem memória quando o Leão do Sul.
Voltamos para ver o coral, as músicas de Natal, toda a evocação de um espírito de exaltação que antes me deixava triste. Ontem não. Ontem, eu fiquei feliz. Entendi que a vida também tem suas azeitonas com caroço, mas acho que estou aprendendo a fazer o que se faz com o pastel: cuspir o caroço fora e aproveitar todo o resto, que é tão bom, tão bom.
Socorro Acioli - Escritora e doutoranda em Estudos de Literatura pela UFF – RJ
socorroacioli@gmail.com

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