Os direitos humanos e programas policiai
MEMBRO da coordenação colegiada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescentee (Cedeca), a comunicadora Margarida Marques analisa o papel dos programas policiais de televisão no contexto de violência e pobreza
Margarida Marques
Especial para O POVO
Especial para O POVO
Por muitos vieses podemos analisar os programas policiais. Fiz uma escolha daquele que acho mais marcante. Não sendo o único, creio que seja o mais revelador de como se sustentam tais programas: a exposição da pobreza. E é aqui, para mim, que se revelam, os elementos de uma complexa engenharia, que junta aspectos de conteúdo, forma e intenção. Estranhamente, realiza-se um fenômeno: os programas mostram as comunidades, geram uma identificação com a população de baixa renda, ao mesmo tempo expõem a pobreza de forma estigmatizadora, pejorativa. Ao passo em que se identifica com o programa, essa população não reconhece aquele tratamento ofensivo como algo que a afete e sim ao outro. Não se reconhece como classe, há um descolamento entre a imagem retratada e a identificação com sua própria realidade.
O linguajar utilizado que aparenta popular: os “comedozin” de rapadura, “do pescoço pra baixo é canela” é a deixa para liberar concepções preconceituosas e posições reacionárias: pena de morte, redução da idade penal. E aquilo que parece engraçado faz com que o telespectador não reconheça o tom de ironia e discriminação com que são ditas tais expressões. E que não perceba que estão usando da sua condição de excluído para estabelecer um lugar de cidadão e não cidadão (de bem), reforçando as construções sociais que vinculam pobreza à violência, exclusão à criminalidade. Naturalizam a aceitação de que existem seres humanos destituídos de direitos.
Outro aspecto que podemos analisar é a prestação de serviço. Ao tempo em que os programas contribuem ouvindo denúncias da comunidade, possibilitam uma proximidade maior com o público, pecam por assumir o papel do Estado. No lugar de cobrar respostas dos poderes públicos diante das situações de violação, assumem a resolução da questão, tratando de forma assistencialista algo para qual deveriam ser cobradas políticas públicas. É o caso do encaminhamento de dependentes químicos para tratamento (com o agravante de que é muitas vezes feito de forma compulsória e explorando a situação) e demais tratamentos de saúde, dentre outros. Desta forma, ocupam um vácuo deixado pela ausência de políticas públicas, por um estado claramente posicionado ao lado dos interesses de uma elite e por um modelo de desenvolvimento gerador de exclusão social e que aprofunda as desigualdades históricas.
Quando abordam os temas da violência, da criminalidade e da segurança pública, o fazem estigmatizando determinados territórios e segmentos sociais. Os apresentadores sentem-se no poder de julgar e estabelecer sentenças e punições: “Furar os dois olhos. Quero ver matar alguém sem a claridade da visão”, anunciou um desses apresentadores, que também é parlamentar. Os repórteres parecem destituídos de sensibilidade quando, de maneira autoritária, sem se importar com a dor alheia, invadem a casa, a privacidade e a dignidade das pessoas com o objetivo de tornar a mais sensacional possível sua matéria.
As matérias, deslocadas do contexto, dificultam a reflexão sobre as situações retratadas. Tais programas são incapazes de contextualizar que nossas periferias negras guardam estreita relação com os imensos contingentes de escravos que, “libertos”, partiram sem qualquer posse, escolaridade ou condição mínima que possibilitasse uma efetiva inclusão, assim como as populações que migraram para os grandes centros, fugindo da seca, ou, ainda, os contingentes operários das fábricas. Não mostram que, diante de imensas dificuldades, essa população tem se organizado e resistido a toda sorte de opressão, criando associações comunitárias, culturais, alternativas de economia solidária, de geração de renda etc. Infelizmente, quando os programas policiais ressignificam esses lugares, essa condição, esses territórios, o fazem numa lógica que, em nome da audiência, da espetacularização, inverte o lugar dessas populações que de vítima passam a ser culpabilizadas.
A lógica da audiência nos revela os interesses econômicos e aí temos uma questão importante de ser refletida. Tais programas contam com anunciantes que se valem da audiência conquistada por eles para vender seus produtos, mesmo que pareça contraditório misturar anúncios de vinho, remédios, tintas, sucos com assassinato, estupro. Isso provoca, por um lado, uma banalização e, por outro, transforma em mercadoria o que deveria ser informação. É neste sentido que a publicação Televisões: violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará nos convida à reflexão sobre a comunicação que queremos. E para garantirmos uma comunicação comprometida em denunciar as violações de direitos e não violadora de direitos humanos, é necessário o envolvimento de toda a sociedade na luta por uma comunicação ética, responsável, promotora de valores de solidariedade. É necessário que sejam construídos mecanismos de controle social, de participação da sociedade, para o envolvimento desta na discussão sobre as políticas de comunicação no nosso país.
Margarida Marques é comunicadora e membro da coordenação colegiada do Cedeca Ceará. Integra também o Conselho de Leitores do O POVO.
fonte: JORNAL O POVO
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