FÉ & RADIODIFUSÃO
Os riscos da intolerância
Por Eugênio Bucci em 1/9/2009
A televisão brasileira vive tempos de pavios curtos. Há um clima de animosidade entre uma difusa mentalidade católica, de corte conservador, de um lado, e métodos ancorados numa idéia material de prosperidade, que adquiriram mais visibilidade com a Igreja Universal do Reino de Deus, no lado oposto. Mas não se trata de uma "guerra santa". A metáfora, ainda que tentadora, não serve. Essa expressão, "guerra santa", vai nos remeter a tempos medievais, com a investida dos papas contra o que enxergavam como um pólo do mal, com o propósito de neutralizá-lo. Não é nada disso que se passa hoje, ainda bem.
Outros vêem no mal-estar da radiodifusão apenas uma disputa comercial entre Globo e Record, o que também não passa de miragem. No fundo dos atritos entre as duas redes principais, que acabou envolvendo diversos outros veículos de comunicação, pairam as indefinições dos marcos regulatórios da radiodifusão (setor que envolve emissoras de rádio e de televisão aberta). Tratei disso num artigo anterior, neste Observatório: "Partido, igreja e televisão" (19/8/2009). Igrejas podem ser proprietárias de redes comerciais de TV? Que relações as igrejas podem manter com os partidos políticos? A política de concessões no Brasil tem observado os requisitos do Estado laico?
Há sinais preocupantes no horizonte. Além do controverso acordo do Estado brasileiro com o Vaticano, de que este OI tratou exaustivamente [remissões abaixo], há outra medida, que veio na seqüência, aprovada pelo Congresso Nacional, que abre caminhos para os mais licenciosos negócios em nome da religião, e que foi denunciada pelo deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). Quanto a isso, é esclarecedora a leitura da coluna de Clóvis Rossi na edição de sexta-feira (28/8) da Folha de S.Paulo (pág. 2), que transcrevo na íntegra:
Templo é dinheiro?
Passo a coluna para o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), porque o que ele narra consegue ser estarrecedor mesmo em um país em que parecia esgotado o estoque de estarrecimentos.
Chico fala da madrugada de 26 para 27 deste mês, em que a Câmara dos Deputados aprovou um absurdo projeto de lei que "dispõe sobre as garantias e direitos fundamentais ao livre exercício da crença e dos cultos religiosos" ("você sabia que estavam ameaçados?", pergunta o deputado. E você, sabia?).
Passemos ao estarrecedor, na palavra do deputado:
"Se o acordo Santa Sé/governo brasileiro já era questionável em vários aspectos, o acordão com setores evangélicos (não a totalidade), patrocinado por quase todos os partidos (inclusive o `oposicionista´ DEM), à exceção do PSOL, foi um absurdo. O projeto tramitou numa celeridade inédita (foi apresentado em julho agora) e, com o relator Eduardo Cunha (PMDB-RJ, neoevangélico), avançou a toque de caixa em plenário, sem ter sido nem sequer proposto no colégio de líderes".
Consequência da aprovação: "É o liberou geral. Agora, quem inventar uma `instituição religiosa´ terá sua organização obrigatoriamente reconhecida pelo Estado no simples ato de criação, independentemente de lastro histórico e cultural, doutrina, corpo de crença. É o supermercado aberto da `fé´. E a `instituição´ poderá modificar à vontade suas instâncias. E suas atividades gozarão de todas as isenções, imunidades e benefícios – fiscais, trabalhistas, patrimoniais – possíveis e imagináveis".
O país já conhece o resultado do que Chico Alencar chama de "supermercado da fé", graças às denúncias do Ministério Público contra a alta cúpula de um desses "supermercados", que tem também uma rede de televisão, além de templos (aliás, Chico pergunta: "templo é dinheiro?").
Uma história de barbáries
O problema, portanto, é de marco legal. O que está em discussão, agora, são os termos com que o país vai ou não vai regulamentar as relações das emissoras de sinal aberto com seitas, igrejas e agremiações religiosas as mais diversas. Não é só. Além da questão legal, começa a recrudescer o tom das acusações recíprocas entre as religiões. Aos poucos, a impaciência vai se convertendo em agressividade – e a agressividade, em intolerância.
Não por acaso, o tema da tolerância esteve sempre associado à capacidade de uma sociedade de conviver com diferentes doutrinas religiosas. Um dos primeiros registros que se tem do termo data do ano 261, quando o imperador Galieno, sob ataques sucessivos dos persas, lançou o primeiro "Edito de Tolerância", por meio do qual reconheceu o cristianismo como religião aceita – não ainda como a religião oficial do império – e mandou restituir aos cristãos as propriedades que lhes tinham sido confiscadas. Mais tarde, em 313, o imperador Constantino, convertido ao cristianismo, também promulgou o seu "Edito da Tolerância". Roma, porém, manteve-se pagã. Com Teodósio, o Grande, que governou de 379 a 395, o culto pagão foi suprimido e o cristianismo virou religião oficial.
Vencida a intolerância pagã, surgiria a intolerância católica, que teve seu ponto mais agudo ao fim da Idade Média, com a Santa Inquisição. Bruxas, judeus e dissidentes eram sacrificados sem derramamento de sangue: de preferência, na fogueira. Um dos capítulos mais brutais dessa perseguição teve lugar na França, em 24 de agosto de 1572: a noite de São Bartolomeu. Somente em Paris, numa única noite, três mil protestantes foram exterminados. Dezenas de milhares perderam a vida em toda a França.
Naqueles tempos, prevalecia o entendimento de que a religião pertencia à órbita do monarca, ao qual caberia interpretar as escrituras e impor aos súditos a sua própria fé. Thomas Hobbes (1588-1679) era defensor dessa tese. Contra ela, insurgiu-se outro inglês, John Locke (1632-1704). Em Carta sobre a Tolerância, obra escrita em latim, em 1685, e publicada anonimamente em 1689, Locke afirma que os assuntos que unificam os homens no pacto em sociedade se referem à proteção de seus direitos, de seus bens e de suas liberdades. A religião deveria ficar fora disso, pois diz respeito às escolhas individuais, sobre as quais não cabe interferência estatal. Diz Locke:
"A comunidade me parece ser uma sociedade de homens constituída somente para que esses obtenham, preservem e aumentem seus próprios interesses civis. Por interesse civil, entendo a vida, a liberdade e a salvaguarda do corpo e a posse de bens externos, como dinheiro, terras, casas, móveis e assim por diante." (John Locke, Carta sobre a Tolerância. São Paulo: Hedra, 2007, p. 38).
Segundo o filósofo, cabia aos fiéis, não ao soberano, avaliar se era adequada ou não a religião tal como professada pelo cidadão livre:
"Admito ser uma igreja uma sociedade voluntária de homens que se juntam por acordo próprio, de modo a adorar Deus publicamente de uma maneira que eles julguem aceitável por Ele e efetiva em relação à salvação de suas almas." (Carta sobre a Tolerância, p. 42).
Desde Locke, a democracia incorporou a noção de que nenhuma penalidade e nenhuma intimidação são capazes de instilar na alma de um homem uma convicção religiosa que nele não seja sincera e espontânea. Aprendeu que, de uma vez por todas, isso não é assunto do Estado. Desde então, serviços públicos a cargo do Estado – e a radiodifusão é, hoje, um desses – não se devem deixar contaminar por doutrinas próprias da fé. Essa interdição não persegue religião alguma, como pode parecer, mas, ao contrário, protege a todas.
No século 20, a intolerância ganhou cores mais selvagens. Do nazismo ao stalinismo, ela se manifestou em todas as formas de totalitarismo. Recentemente, temos visto guerras e atos de terror que se dizem inspirados na palavra de Deus. A verdade absoluta de uns serve de base para a dizimação de outros – e toda violência se pretende perdoada.
Será que sabemos nos respeitar?
Esses fatos deveriam abrir os nossos olhos. O discurso que autoriza a verdade absoluta, qualquer que seja ela, e que identifica nos adversários o "demônio" ou qualquer outra entidade que corporifique o mal é um discurso que nos ameaça. O Brasil tem sido uma terra de convivência pacífica – não nos desviemos agora.
Sinais de preocupação não faltam. É de fato estarrecedor, para usar a palavra de Clóvis Rossi, que estejamos diante da contaminação de serviços públicos por assuntos religiosos. Nesse ambiente, é preciso cuidado, muito cuidado, para que não sobressaia, nas acusações contra uma ou outra rede de TV, uma nota, ainda que mínima, de intolerância.
O modo que cada um encontra de professar a sua fé deve ser respeitado na sua integridade, pois não é aí que reside o problema. Ele está, como vem sendo exposto, no cruzamento indevido entre igreja e grupos comerciais de mídia – às vezes, com extensões em partidos políticos. Ele está em iniciativas que tentam sabotar a garantia do Estado laico.
O desafio do Brasil, agora, tem esse adicional de dificuldade: é preciso separar o debate que se refere à regulamentação da radiodifusão de qualquer pretensão de interferência na opção religiosa individual.
Brincar com expressões como "guerra santa" é brincar com o inferno. Reduzir tudo a uma guerra comercial é dar de ombros, é fazer de conta que não há no ar um atrito mais sério. Sejamos prudentes.
Retirado do site www.observatoriodaimprensa.com.br
Os riscos da intolerância
Por Eugênio Bucci em 1/9/2009
A televisão brasileira vive tempos de pavios curtos. Há um clima de animosidade entre uma difusa mentalidade católica, de corte conservador, de um lado, e métodos ancorados numa idéia material de prosperidade, que adquiriram mais visibilidade com a Igreja Universal do Reino de Deus, no lado oposto. Mas não se trata de uma "guerra santa". A metáfora, ainda que tentadora, não serve. Essa expressão, "guerra santa", vai nos remeter a tempos medievais, com a investida dos papas contra o que enxergavam como um pólo do mal, com o propósito de neutralizá-lo. Não é nada disso que se passa hoje, ainda bem.
Outros vêem no mal-estar da radiodifusão apenas uma disputa comercial entre Globo e Record, o que também não passa de miragem. No fundo dos atritos entre as duas redes principais, que acabou envolvendo diversos outros veículos de comunicação, pairam as indefinições dos marcos regulatórios da radiodifusão (setor que envolve emissoras de rádio e de televisão aberta). Tratei disso num artigo anterior, neste Observatório: "Partido, igreja e televisão" (19/8/2009). Igrejas podem ser proprietárias de redes comerciais de TV? Que relações as igrejas podem manter com os partidos políticos? A política de concessões no Brasil tem observado os requisitos do Estado laico?
Há sinais preocupantes no horizonte. Além do controverso acordo do Estado brasileiro com o Vaticano, de que este OI tratou exaustivamente [remissões abaixo], há outra medida, que veio na seqüência, aprovada pelo Congresso Nacional, que abre caminhos para os mais licenciosos negócios em nome da religião, e que foi denunciada pelo deputado Chico Alencar (PSOL-RJ). Quanto a isso, é esclarecedora a leitura da coluna de Clóvis Rossi na edição de sexta-feira (28/8) da Folha de S.Paulo (pág. 2), que transcrevo na íntegra:
Templo é dinheiro?
Passo a coluna para o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), porque o que ele narra consegue ser estarrecedor mesmo em um país em que parecia esgotado o estoque de estarrecimentos.
Chico fala da madrugada de 26 para 27 deste mês, em que a Câmara dos Deputados aprovou um absurdo projeto de lei que "dispõe sobre as garantias e direitos fundamentais ao livre exercício da crença e dos cultos religiosos" ("você sabia que estavam ameaçados?", pergunta o deputado. E você, sabia?).
Passemos ao estarrecedor, na palavra do deputado:
"Se o acordo Santa Sé/governo brasileiro já era questionável em vários aspectos, o acordão com setores evangélicos (não a totalidade), patrocinado por quase todos os partidos (inclusive o `oposicionista´ DEM), à exceção do PSOL, foi um absurdo. O projeto tramitou numa celeridade inédita (foi apresentado em julho agora) e, com o relator Eduardo Cunha (PMDB-RJ, neoevangélico), avançou a toque de caixa em plenário, sem ter sido nem sequer proposto no colégio de líderes".
Consequência da aprovação: "É o liberou geral. Agora, quem inventar uma `instituição religiosa´ terá sua organização obrigatoriamente reconhecida pelo Estado no simples ato de criação, independentemente de lastro histórico e cultural, doutrina, corpo de crença. É o supermercado aberto da `fé´. E a `instituição´ poderá modificar à vontade suas instâncias. E suas atividades gozarão de todas as isenções, imunidades e benefícios – fiscais, trabalhistas, patrimoniais – possíveis e imagináveis".
O país já conhece o resultado do que Chico Alencar chama de "supermercado da fé", graças às denúncias do Ministério Público contra a alta cúpula de um desses "supermercados", que tem também uma rede de televisão, além de templos (aliás, Chico pergunta: "templo é dinheiro?").
Uma história de barbáries
O problema, portanto, é de marco legal. O que está em discussão, agora, são os termos com que o país vai ou não vai regulamentar as relações das emissoras de sinal aberto com seitas, igrejas e agremiações religiosas as mais diversas. Não é só. Além da questão legal, começa a recrudescer o tom das acusações recíprocas entre as religiões. Aos poucos, a impaciência vai se convertendo em agressividade – e a agressividade, em intolerância.
Não por acaso, o tema da tolerância esteve sempre associado à capacidade de uma sociedade de conviver com diferentes doutrinas religiosas. Um dos primeiros registros que se tem do termo data do ano 261, quando o imperador Galieno, sob ataques sucessivos dos persas, lançou o primeiro "Edito de Tolerância", por meio do qual reconheceu o cristianismo como religião aceita – não ainda como a religião oficial do império – e mandou restituir aos cristãos as propriedades que lhes tinham sido confiscadas. Mais tarde, em 313, o imperador Constantino, convertido ao cristianismo, também promulgou o seu "Edito da Tolerância". Roma, porém, manteve-se pagã. Com Teodósio, o Grande, que governou de 379 a 395, o culto pagão foi suprimido e o cristianismo virou religião oficial.
Vencida a intolerância pagã, surgiria a intolerância católica, que teve seu ponto mais agudo ao fim da Idade Média, com a Santa Inquisição. Bruxas, judeus e dissidentes eram sacrificados sem derramamento de sangue: de preferência, na fogueira. Um dos capítulos mais brutais dessa perseguição teve lugar na França, em 24 de agosto de 1572: a noite de São Bartolomeu. Somente em Paris, numa única noite, três mil protestantes foram exterminados. Dezenas de milhares perderam a vida em toda a França.
Naqueles tempos, prevalecia o entendimento de que a religião pertencia à órbita do monarca, ao qual caberia interpretar as escrituras e impor aos súditos a sua própria fé. Thomas Hobbes (1588-1679) era defensor dessa tese. Contra ela, insurgiu-se outro inglês, John Locke (1632-1704). Em Carta sobre a Tolerância, obra escrita em latim, em 1685, e publicada anonimamente em 1689, Locke afirma que os assuntos que unificam os homens no pacto em sociedade se referem à proteção de seus direitos, de seus bens e de suas liberdades. A religião deveria ficar fora disso, pois diz respeito às escolhas individuais, sobre as quais não cabe interferência estatal. Diz Locke:
"A comunidade me parece ser uma sociedade de homens constituída somente para que esses obtenham, preservem e aumentem seus próprios interesses civis. Por interesse civil, entendo a vida, a liberdade e a salvaguarda do corpo e a posse de bens externos, como dinheiro, terras, casas, móveis e assim por diante." (John Locke, Carta sobre a Tolerância. São Paulo: Hedra, 2007, p. 38).
Segundo o filósofo, cabia aos fiéis, não ao soberano, avaliar se era adequada ou não a religião tal como professada pelo cidadão livre:
"Admito ser uma igreja uma sociedade voluntária de homens que se juntam por acordo próprio, de modo a adorar Deus publicamente de uma maneira que eles julguem aceitável por Ele e efetiva em relação à salvação de suas almas." (Carta sobre a Tolerância, p. 42).
Desde Locke, a democracia incorporou a noção de que nenhuma penalidade e nenhuma intimidação são capazes de instilar na alma de um homem uma convicção religiosa que nele não seja sincera e espontânea. Aprendeu que, de uma vez por todas, isso não é assunto do Estado. Desde então, serviços públicos a cargo do Estado – e a radiodifusão é, hoje, um desses – não se devem deixar contaminar por doutrinas próprias da fé. Essa interdição não persegue religião alguma, como pode parecer, mas, ao contrário, protege a todas.
No século 20, a intolerância ganhou cores mais selvagens. Do nazismo ao stalinismo, ela se manifestou em todas as formas de totalitarismo. Recentemente, temos visto guerras e atos de terror que se dizem inspirados na palavra de Deus. A verdade absoluta de uns serve de base para a dizimação de outros – e toda violência se pretende perdoada.
Será que sabemos nos respeitar?
Esses fatos deveriam abrir os nossos olhos. O discurso que autoriza a verdade absoluta, qualquer que seja ela, e que identifica nos adversários o "demônio" ou qualquer outra entidade que corporifique o mal é um discurso que nos ameaça. O Brasil tem sido uma terra de convivência pacífica – não nos desviemos agora.
Sinais de preocupação não faltam. É de fato estarrecedor, para usar a palavra de Clóvis Rossi, que estejamos diante da contaminação de serviços públicos por assuntos religiosos. Nesse ambiente, é preciso cuidado, muito cuidado, para que não sobressaia, nas acusações contra uma ou outra rede de TV, uma nota, ainda que mínima, de intolerância.
O modo que cada um encontra de professar a sua fé deve ser respeitado na sua integridade, pois não é aí que reside o problema. Ele está, como vem sendo exposto, no cruzamento indevido entre igreja e grupos comerciais de mídia – às vezes, com extensões em partidos políticos. Ele está em iniciativas que tentam sabotar a garantia do Estado laico.
O desafio do Brasil, agora, tem esse adicional de dificuldade: é preciso separar o debate que se refere à regulamentação da radiodifusão de qualquer pretensão de interferência na opção religiosa individual.
Brincar com expressões como "guerra santa" é brincar com o inferno. Reduzir tudo a uma guerra comercial é dar de ombros, é fazer de conta que não há no ar um atrito mais sério. Sejamos prudentes.
Retirado do site www.observatoriodaimprensa.com.br