ENTREVISTA / MARCOS DANTAS
"Rever política de concessões é prioridade na Confecom"
Por Patrícia Cornils em 8/9/2009
Reproduzido da revista ARede, 4/9/2009, apud Observatório do Direito à Comunicação; título original "Confecom: os novos paradigmas"
A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que será realizada em dezembro, tem uma importância histórica porque o Brasil jamais fez um debate público sobre sua política de comunicação. Os diferentes segmentos da sociedade e mesmo os partidos políticos demoraram muito a dar a merecida importância a este tema, embora os meios de comunicação social tenham fundamental importância na vida do país e no desenvolvimento da democracia. De outro lado, os empresários da comunicação, os donos de jornais, revistas, rádios e TVs sempre se opuseram a este debate, temerosos de que a definição de uma política de comunicação social venha interferir nos seus negócios e na "liberdade de imprensa".
O movimento pela democratização da comunicação existe pelo menos desde a Constituinte de 1988. Depois da Constituinte, e até como resultado dela, alguns segmentos organizaram o Fórum Nacional da Democratização da Comunicação (FNDC). A partir daí se estabeleceu um debate sobre o tema. Mas, como lembra o jornalista Marcos Dantas, professor do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, trata-se de um debate difícil. Mesmo nos meios acadêmicos, ele praticamente não existe. Há, em todo o país, professores e pesquisadores que debatem essa questão isoladamente, sem uma institucionalidade.
Durante muito tempo, a discussão ficou restrita a sindicatos de jornalistas e algumas entidades da área. Além disso, os meios de comunicação não pautam essa discussão, e tudo o que se discute na sociedade é pautado por eles. Daí a importância de o governo ter convocado a Confecom, cuja organização tem envolvido muita polêmica. Nesta entrevista, Dantas, um estudioso do papel dos meios de comunicação e de sua influência social, traça um panorama histórico da comunicação no Brasil e discute como será o futuro.
***
Como se chegou à convocação da Conferência?
Marcos Dantas – Há três ou quatro anos, começou a crescer no Brasil o movimento pela convocação da Conferência, por meio das comissões pró-conferência. Organizou-se uma comissão nacional, que funcionava em Brasília, e começaram a se formar as comissões estaduais. Em alguns estados funcionou melhor, em outros pior. Essa comissão nacional conseguiu uma articulação no Congresso Nacional, pela ação de deputados ligados aos partidos de esquerda (PT, PSOL, PSB, PCdoB). Com isso, foi possível construir uma massa crítica, adensar o processo para arrancar a Conferência, que tinha de ser convocada pelo Executivo. Agora existe uma comissão organizadora formalmente nomeada pelo presidente da República e integrada por representantes do governo, das empresas e da sociedade civil não-empresarial. Essa estrutura deve se repetir, na medida do possível, nos estados e municípios.
E já há uma disputa na comissão organizadora...
M.D. – Há um enorme impasse. A comissão organizadora precisa baixar um regimento estabelecendo como a Conferência será realizada. Os interesses opostos são muito fortes. O segmento de radiodifusão queria que o regimento definisse a agenda, a pauta da conferência, e queria que isso se resumisse à discussão de regulamentação da internet. O setor social quer discutir um enorme contencioso do campo da comunicação social, que tem a ver com política de concessão, com regulamentação do conteúdo de rádio e TV nos termos da Constituição brasileira, que nunca foi regulamentado.
Que contencioso é esse?
M.D. – A Constituição de 1988 tem um capítulo sobre Comunicação Social. Esse capítulo define a missão da comunicação social e, sobretudo, a missão da radiodifusão. Porque a radiodifusão é um instrumento fundamental de cultura, educação, informação. A televisão está presente em 99% dos lares e a grande maioria da população se informa e se forma pela televisão, quando não pelo rádio. Desde que o rádio, o primeiro instrumento de comunicação eletrônica de massa, começou a se organizar economicamente e socialmente, nos anos 1920, foi visto como um instrumento de política de Estado. Na maioria dos países, o Estado monopolizou o rádio, entendendo sua capacidade – e depois a da televisão – para formar mentes e mobilizar opiniões.
No Brasil, até os anos 1960, não havia lei muito clara em relação ao rádio. Havia uma rádio estatal forte, a Rádio Nacional, que foi muito importante na formação da mentalidade brasileira ao longo dos anos 1940 e 1950. Havia rádios comerciais, mas não regras claras de concessão, cassação, regulamentação, nada disso. Em 1962, o então presidente Jânio Quadros cassou uma rádio e deflagrou-se uma mobilização no sentido de que era preciso organizar juridicamente esse cenário. Naquele ano, foi redigido o Código Brasileiro de Telemunicações. Uma das questões mais importantes definidas pelo Código foi que só a União, em nome da federação, pode conceder frequências de rádio e de TV. O Código estabeleceu isso em um plano muito técnico. A única questão política ali, que depois nossa Constituição abrigou, era a necessidade de que o concessionário fosse brasileiro nato ou naturalizado. Que fosse uma pessoa física. Isso, na verdade, é uma herança dos tempos em que o rádio era visto como uma questão de segurança nacional.
Em 1964, houve o golpe e tudo o que o Código organizou foi executado pelos militares. Que, diga-se de passagem, efetivamente modernizaram as comunicações deste país. Houve uma revolução nas comunicações brasileiras no período que vai de 1965, com a criação da Embratel, até 1985. Depois surgiram novas questões. Não apenas porque começou o período democrático, mas porque nos anos 1960 o celular não existia, a TV por assinatura não existia, a internet não existia, a TV digital não existia. O satélite estava nascendo naquele momento.
O que mudou com a Constituição de 1988?
M.D. – A Constituição estabeleceu, no artigo 221, uma novidade fundamental em relação ao Código. Estabeleceu princípios de uma política de conteúdos. A finalidade cultural e educativa da radiodifusão. Definiu a radiodifusão como um serviço público, que pode ser concedido a agentes privados, mas tem obrigações públicas a cumprir: cultura, educação, informação de alto nível e regionalização da programação, para valorizar outros setores culturais do país. Mas uma coisa é estabelecer isso em uma Constituição, outra é colocar em prática. Precisa haver uma lei para dizer como esses aspectos vão ser executados. E essa lei nunca existiu. O Brasil não tem uma lei de comunicação. Temos a Lei do Cabo e a Lei Geral das Telecomunicações, que tratam do serviço de transporte de comunicação. Mas isso também mudou. Aparentemente, a Claro ou a TIM são operadoras de telecomunicação. Operar telecomunicação é transportar voz, dados. Mas hoje dá para ver TV no celular, entrar na internet pelo celular, baixar música. Isso não é mais telecomunicação. Hoje, essas operadoras também são provedoras de conteúdo.
E quais são os interesses em disputa?
M.D. – Quem controla a comunicação, controla o poder político e o poder econômico. Nessa questão não há acordo, na sociedade brasileira. E é esse o problema que atravanca a comissão organizadora da Confecom. O que nos mostra a experiência internacional, principalmente na Europa, é uma tendência de se considerar a convergência e romper com a divisão entre radiodifusão e telecomunicações, que não tem mais sentido, e considerar uma nova divisão, que seria entre conteúdo e infraestrutura. Existe uma infraestrutura para levar conteúdos e existe a produção de conteúdo. E você passa a regulamentar esses dois blocos, em vez de regulamentar por segmentos verticalizados, que estão sendo ultrapassados pela evolução tecnológica.
Sempre cito, como exemplo, a regulamentação inglesa. Poucas pessoas sabem, mas a BBC não é uma emissora de televisão. É uma programadora de televisão. As frequências usadas para chegar na casa do espectador são operadas por uma empresa chamada Crown Castle. Então, tem uma programadora de TV que não detém mais a frequência VHF, assim como a Fox não detém o cabo da NET nem a frequência do satélite Sky. Ela chega nas casas por outros distribuidores, de outras empresas.
A separação democratiza a produção e o acesso à informação. Se você define os elementos da cadeia produtiva (quem produz, quem programa, quem empacota, quem distribui), passa a ter poder (e isso é papel do Estado) de criar regras que impeçam acordos, dentro da cadeia, que gerem monopólios ou que obriguem os diferentes segmentos da cadeia a abrir espaço para outros fornecedores – que não sejam necessariamente comerciais, comandados apenas pela audiência. E isso tem como consequência democratizar e pluralizar o acesso e a produção. A TV por assinatura funciona assim: se a revista ARede criar um canal de TV, não entra na Net se a Globosat (que é do mesmo grupo econômico da Net) não concordar. Existe um acordo contratual de que qualquer proposta para transmitir um canal na rede da Net tem de receber a concordância da Globosat. Então, tem canal que não entra na Net. Agora, se você identifica esses elementos da cadeia, se cria um órgão regulador para intervir nessas coisas, começa a abrir espaço. Se estabelece, como a Lei do Cabo estabeleceu, que é obrigatório ter um canal do Senado, um canal do Judiciário, que tem de ter espaço para canal comunitário, tem que transmitir os canais abertos... tudo isso é o Estado quem decide, por lei.
Qual é a maior demanda da sociedade civil em relação à política de comunicação?
M.D. – Rever, por exemplo, a política de concessão, sobretudo porque ao longo desses anos, desde o Código de 1962, já não se sabe direito quem tem concessão para quê. Sem falar que muitos parlamentares têm concessões ilegalmente, por meio de laranjas. Isso, sem dúvida, precisa ser revisto. Mas você poderia abrir espaço para rádios e tevês comunitárias. Esse é um aspecto que o pessoal está querendo: um espaço maior para a manifestação da sociedade não comercial. Também se reivindica a regulamentação. A lei brasileira estabelece, por exemplo, que o concessionário está obrigado a ocupar aquela concessão com programação. Ou devolvê-la. Mas não existe regra sobre como se ocupar o espectro. Então, uma porção de gente ocupa com leilão de gado, venda de tapete, igrejas. E não é ilegal, porque não existe regra. Essas coisas têm de ser regulamentadas.
Por que os radiodifusores consideram prioritário regulamentar a internet?
M.D. – Confesso que ainda não entendi o movimento dos radiodifusores. Não sei se não perceberam o mundo, não entenderam direito o que vem por aí. A TV brasileira aberta, comercial, ainda é o grande veículo de comunicação no Brasil. TV a cabo e internet são para 10%. Pode ser, também, que estejam fazendo uma cortina de fumaça, tentando confundir. Quando eles propõem regulamentar a internet, uma coisa tão difícil de regulamentar e que ao mesmo tempo gera uma grande reação, criam uma polêmica em um campo que não afeta seus interesses comerciais e causa grande confusão. A tendência é a população consumidora no Brasil daqui a cinco, dez anos, estar na TV paga, no celular, na internet. Não mais na TV aberta. Em países como Estados Unidos, Japão, Holanda, Itália, Inglaterra, França, a TV aberta está desaparecendo: 90% das residências americanas têm TV por assinatura e uns 60% têm banda larga em casa.
Quais as questões fundamentais para o futuro?
M.D. – Duas coisas são importantes e têm que vir unidas. Uma é a universalização da banda larga. Precisamos de uma política que faça com que, em um prazo exequível, digamos, dez anos, a banda larga seja tão disseminada no Brasil quanto é a TV hoje. É óbvio que isso demanda uma política pesada de Estado; senão, não vai acontecer. Outra é ter uma política de conteúdo. Assegurar que, por meio dessa infraestrutura, se garanta aos mais variados produtores de mídia a capacidade de se expressar, de produzir, de fazer com que sua informação, seu produto, sua ideia, sua mensagem esteja ali, da maneira que você queira colocar. Pode ser uma página de internet, um canal de rádio comunitária, de TV comunitária... É preciso assegurar o espaço, pois não há capacidade infinita de transporte, há um número limitado de canais de TV, de áudio, de TV sob demanda, de canais interativos.
Por que as discussões sobre comunicação social não mobilizam outros setores?
M.D. – Falta, na sociedade brasileira, uma visão clara sobre comunicação. O problema da comunicação fica restrito aos comunicólogos. O do petróleo, aos petroleiros; o de saúde, ao pessoal da saúde. Não se discute isso em um sentido sistêmico, em um projeto de país. Faltam educadores, falta a turma de saúde nesse debate. Faltam também os cineastas. Todos os que criam conteúdo têm de estar nessa discussão, porque política de comunicação social é também política de conteúdo. E a política de conteúdo deve assegurar não apenas os conteúdos comerciais, mas um espaço amplo para a produção não comercial, a produção social, a produção cultural. Isso implica não só espaço para transmitir, mas apoio do Estado, fomento para produções. Uma questão que me preocupa muito é a do conteúdo nacional, inclusive no espaço comercial. Nada justifica que você não tenha cotas para produção nacional até mesmo nos canais estrangeiros. Esse é um princípio aceito internacionalmente. Os países têm direito a proteger sua cultura. Na Europa, os países da comunidade são obrigados a implantar uma política de cotas para a produção europeia. Cada país tem sua política de cotas da produção nacional.
Como definir uma política diante de posições tão divergentes?
M.D. – É preciso desarmar os espíritos e construir consensos. Em toda discussão tem de haver concessão, a democracia passa por aí. Não dá para querer tudo e não perder nada. Os noticiários, por exemplo, têm de ser mais neutros, é preciso abrir espaços para vozes divergentes nos meios de comunicação. Na TV brasileira há absolutos consensos, não há espaço para o debate, para a veiculação de posições efetivamente antagônicas. Tem que fazer concessões, entender que temos uma sociedade plural. O papel do governo seria construir esse consenso.
***
Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-RJ. Foi Secretário de Educação à Distância do MEC, secretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Comunicações, representante do Poder Executivo no Conselho Consultivo da Anatel, representante do MEC no Conselho Deliberativo e no Comitê Gestor do Programa TV Digital, representante do governo no Comitê Gestor da Internet-Brasil.
"Rever política de concessões é prioridade na Confecom"
Por Patrícia Cornils em 8/9/2009
Reproduzido da revista ARede, 4/9/2009, apud Observatório do Direito à Comunicação; título original "Confecom: os novos paradigmas"
A Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que será realizada em dezembro, tem uma importância histórica porque o Brasil jamais fez um debate público sobre sua política de comunicação. Os diferentes segmentos da sociedade e mesmo os partidos políticos demoraram muito a dar a merecida importância a este tema, embora os meios de comunicação social tenham fundamental importância na vida do país e no desenvolvimento da democracia. De outro lado, os empresários da comunicação, os donos de jornais, revistas, rádios e TVs sempre se opuseram a este debate, temerosos de que a definição de uma política de comunicação social venha interferir nos seus negócios e na "liberdade de imprensa".
O movimento pela democratização da comunicação existe pelo menos desde a Constituinte de 1988. Depois da Constituinte, e até como resultado dela, alguns segmentos organizaram o Fórum Nacional da Democratização da Comunicação (FNDC). A partir daí se estabeleceu um debate sobre o tema. Mas, como lembra o jornalista Marcos Dantas, professor do Departamento de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, trata-se de um debate difícil. Mesmo nos meios acadêmicos, ele praticamente não existe. Há, em todo o país, professores e pesquisadores que debatem essa questão isoladamente, sem uma institucionalidade.
Durante muito tempo, a discussão ficou restrita a sindicatos de jornalistas e algumas entidades da área. Além disso, os meios de comunicação não pautam essa discussão, e tudo o que se discute na sociedade é pautado por eles. Daí a importância de o governo ter convocado a Confecom, cuja organização tem envolvido muita polêmica. Nesta entrevista, Dantas, um estudioso do papel dos meios de comunicação e de sua influência social, traça um panorama histórico da comunicação no Brasil e discute como será o futuro.
***
Como se chegou à convocação da Conferência?
Marcos Dantas – Há três ou quatro anos, começou a crescer no Brasil o movimento pela convocação da Conferência, por meio das comissões pró-conferência. Organizou-se uma comissão nacional, que funcionava em Brasília, e começaram a se formar as comissões estaduais. Em alguns estados funcionou melhor, em outros pior. Essa comissão nacional conseguiu uma articulação no Congresso Nacional, pela ação de deputados ligados aos partidos de esquerda (PT, PSOL, PSB, PCdoB). Com isso, foi possível construir uma massa crítica, adensar o processo para arrancar a Conferência, que tinha de ser convocada pelo Executivo. Agora existe uma comissão organizadora formalmente nomeada pelo presidente da República e integrada por representantes do governo, das empresas e da sociedade civil não-empresarial. Essa estrutura deve se repetir, na medida do possível, nos estados e municípios.
E já há uma disputa na comissão organizadora...
M.D. – Há um enorme impasse. A comissão organizadora precisa baixar um regimento estabelecendo como a Conferência será realizada. Os interesses opostos são muito fortes. O segmento de radiodifusão queria que o regimento definisse a agenda, a pauta da conferência, e queria que isso se resumisse à discussão de regulamentação da internet. O setor social quer discutir um enorme contencioso do campo da comunicação social, que tem a ver com política de concessão, com regulamentação do conteúdo de rádio e TV nos termos da Constituição brasileira, que nunca foi regulamentado.
Que contencioso é esse?
M.D. – A Constituição de 1988 tem um capítulo sobre Comunicação Social. Esse capítulo define a missão da comunicação social e, sobretudo, a missão da radiodifusão. Porque a radiodifusão é um instrumento fundamental de cultura, educação, informação. A televisão está presente em 99% dos lares e a grande maioria da população se informa e se forma pela televisão, quando não pelo rádio. Desde que o rádio, o primeiro instrumento de comunicação eletrônica de massa, começou a se organizar economicamente e socialmente, nos anos 1920, foi visto como um instrumento de política de Estado. Na maioria dos países, o Estado monopolizou o rádio, entendendo sua capacidade – e depois a da televisão – para formar mentes e mobilizar opiniões.
No Brasil, até os anos 1960, não havia lei muito clara em relação ao rádio. Havia uma rádio estatal forte, a Rádio Nacional, que foi muito importante na formação da mentalidade brasileira ao longo dos anos 1940 e 1950. Havia rádios comerciais, mas não regras claras de concessão, cassação, regulamentação, nada disso. Em 1962, o então presidente Jânio Quadros cassou uma rádio e deflagrou-se uma mobilização no sentido de que era preciso organizar juridicamente esse cenário. Naquele ano, foi redigido o Código Brasileiro de Telemunicações. Uma das questões mais importantes definidas pelo Código foi que só a União, em nome da federação, pode conceder frequências de rádio e de TV. O Código estabeleceu isso em um plano muito técnico. A única questão política ali, que depois nossa Constituição abrigou, era a necessidade de que o concessionário fosse brasileiro nato ou naturalizado. Que fosse uma pessoa física. Isso, na verdade, é uma herança dos tempos em que o rádio era visto como uma questão de segurança nacional.
Em 1964, houve o golpe e tudo o que o Código organizou foi executado pelos militares. Que, diga-se de passagem, efetivamente modernizaram as comunicações deste país. Houve uma revolução nas comunicações brasileiras no período que vai de 1965, com a criação da Embratel, até 1985. Depois surgiram novas questões. Não apenas porque começou o período democrático, mas porque nos anos 1960 o celular não existia, a TV por assinatura não existia, a internet não existia, a TV digital não existia. O satélite estava nascendo naquele momento.
O que mudou com a Constituição de 1988?
M.D. – A Constituição estabeleceu, no artigo 221, uma novidade fundamental em relação ao Código. Estabeleceu princípios de uma política de conteúdos. A finalidade cultural e educativa da radiodifusão. Definiu a radiodifusão como um serviço público, que pode ser concedido a agentes privados, mas tem obrigações públicas a cumprir: cultura, educação, informação de alto nível e regionalização da programação, para valorizar outros setores culturais do país. Mas uma coisa é estabelecer isso em uma Constituição, outra é colocar em prática. Precisa haver uma lei para dizer como esses aspectos vão ser executados. E essa lei nunca existiu. O Brasil não tem uma lei de comunicação. Temos a Lei do Cabo e a Lei Geral das Telecomunicações, que tratam do serviço de transporte de comunicação. Mas isso também mudou. Aparentemente, a Claro ou a TIM são operadoras de telecomunicação. Operar telecomunicação é transportar voz, dados. Mas hoje dá para ver TV no celular, entrar na internet pelo celular, baixar música. Isso não é mais telecomunicação. Hoje, essas operadoras também são provedoras de conteúdo.
E quais são os interesses em disputa?
M.D. – Quem controla a comunicação, controla o poder político e o poder econômico. Nessa questão não há acordo, na sociedade brasileira. E é esse o problema que atravanca a comissão organizadora da Confecom. O que nos mostra a experiência internacional, principalmente na Europa, é uma tendência de se considerar a convergência e romper com a divisão entre radiodifusão e telecomunicações, que não tem mais sentido, e considerar uma nova divisão, que seria entre conteúdo e infraestrutura. Existe uma infraestrutura para levar conteúdos e existe a produção de conteúdo. E você passa a regulamentar esses dois blocos, em vez de regulamentar por segmentos verticalizados, que estão sendo ultrapassados pela evolução tecnológica.
Sempre cito, como exemplo, a regulamentação inglesa. Poucas pessoas sabem, mas a BBC não é uma emissora de televisão. É uma programadora de televisão. As frequências usadas para chegar na casa do espectador são operadas por uma empresa chamada Crown Castle. Então, tem uma programadora de TV que não detém mais a frequência VHF, assim como a Fox não detém o cabo da NET nem a frequência do satélite Sky. Ela chega nas casas por outros distribuidores, de outras empresas.
A separação democratiza a produção e o acesso à informação. Se você define os elementos da cadeia produtiva (quem produz, quem programa, quem empacota, quem distribui), passa a ter poder (e isso é papel do Estado) de criar regras que impeçam acordos, dentro da cadeia, que gerem monopólios ou que obriguem os diferentes segmentos da cadeia a abrir espaço para outros fornecedores – que não sejam necessariamente comerciais, comandados apenas pela audiência. E isso tem como consequência democratizar e pluralizar o acesso e a produção. A TV por assinatura funciona assim: se a revista ARede criar um canal de TV, não entra na Net se a Globosat (que é do mesmo grupo econômico da Net) não concordar. Existe um acordo contratual de que qualquer proposta para transmitir um canal na rede da Net tem de receber a concordância da Globosat. Então, tem canal que não entra na Net. Agora, se você identifica esses elementos da cadeia, se cria um órgão regulador para intervir nessas coisas, começa a abrir espaço. Se estabelece, como a Lei do Cabo estabeleceu, que é obrigatório ter um canal do Senado, um canal do Judiciário, que tem de ter espaço para canal comunitário, tem que transmitir os canais abertos... tudo isso é o Estado quem decide, por lei.
Qual é a maior demanda da sociedade civil em relação à política de comunicação?
M.D. – Rever, por exemplo, a política de concessão, sobretudo porque ao longo desses anos, desde o Código de 1962, já não se sabe direito quem tem concessão para quê. Sem falar que muitos parlamentares têm concessões ilegalmente, por meio de laranjas. Isso, sem dúvida, precisa ser revisto. Mas você poderia abrir espaço para rádios e tevês comunitárias. Esse é um aspecto que o pessoal está querendo: um espaço maior para a manifestação da sociedade não comercial. Também se reivindica a regulamentação. A lei brasileira estabelece, por exemplo, que o concessionário está obrigado a ocupar aquela concessão com programação. Ou devolvê-la. Mas não existe regra sobre como se ocupar o espectro. Então, uma porção de gente ocupa com leilão de gado, venda de tapete, igrejas. E não é ilegal, porque não existe regra. Essas coisas têm de ser regulamentadas.
Por que os radiodifusores consideram prioritário regulamentar a internet?
M.D. – Confesso que ainda não entendi o movimento dos radiodifusores. Não sei se não perceberam o mundo, não entenderam direito o que vem por aí. A TV brasileira aberta, comercial, ainda é o grande veículo de comunicação no Brasil. TV a cabo e internet são para 10%. Pode ser, também, que estejam fazendo uma cortina de fumaça, tentando confundir. Quando eles propõem regulamentar a internet, uma coisa tão difícil de regulamentar e que ao mesmo tempo gera uma grande reação, criam uma polêmica em um campo que não afeta seus interesses comerciais e causa grande confusão. A tendência é a população consumidora no Brasil daqui a cinco, dez anos, estar na TV paga, no celular, na internet. Não mais na TV aberta. Em países como Estados Unidos, Japão, Holanda, Itália, Inglaterra, França, a TV aberta está desaparecendo: 90% das residências americanas têm TV por assinatura e uns 60% têm banda larga em casa.
Quais as questões fundamentais para o futuro?
M.D. – Duas coisas são importantes e têm que vir unidas. Uma é a universalização da banda larga. Precisamos de uma política que faça com que, em um prazo exequível, digamos, dez anos, a banda larga seja tão disseminada no Brasil quanto é a TV hoje. É óbvio que isso demanda uma política pesada de Estado; senão, não vai acontecer. Outra é ter uma política de conteúdo. Assegurar que, por meio dessa infraestrutura, se garanta aos mais variados produtores de mídia a capacidade de se expressar, de produzir, de fazer com que sua informação, seu produto, sua ideia, sua mensagem esteja ali, da maneira que você queira colocar. Pode ser uma página de internet, um canal de rádio comunitária, de TV comunitária... É preciso assegurar o espaço, pois não há capacidade infinita de transporte, há um número limitado de canais de TV, de áudio, de TV sob demanda, de canais interativos.
Por que as discussões sobre comunicação social não mobilizam outros setores?
M.D. – Falta, na sociedade brasileira, uma visão clara sobre comunicação. O problema da comunicação fica restrito aos comunicólogos. O do petróleo, aos petroleiros; o de saúde, ao pessoal da saúde. Não se discute isso em um sentido sistêmico, em um projeto de país. Faltam educadores, falta a turma de saúde nesse debate. Faltam também os cineastas. Todos os que criam conteúdo têm de estar nessa discussão, porque política de comunicação social é também política de conteúdo. E a política de conteúdo deve assegurar não apenas os conteúdos comerciais, mas um espaço amplo para a produção não comercial, a produção social, a produção cultural. Isso implica não só espaço para transmitir, mas apoio do Estado, fomento para produções. Uma questão que me preocupa muito é a do conteúdo nacional, inclusive no espaço comercial. Nada justifica que você não tenha cotas para produção nacional até mesmo nos canais estrangeiros. Esse é um princípio aceito internacionalmente. Os países têm direito a proteger sua cultura. Na Europa, os países da comunidade são obrigados a implantar uma política de cotas para a produção europeia. Cada país tem sua política de cotas da produção nacional.
Como definir uma política diante de posições tão divergentes?
M.D. – É preciso desarmar os espíritos e construir consensos. Em toda discussão tem de haver concessão, a democracia passa por aí. Não dá para querer tudo e não perder nada. Os noticiários, por exemplo, têm de ser mais neutros, é preciso abrir espaços para vozes divergentes nos meios de comunicação. Na TV brasileira há absolutos consensos, não há espaço para o debate, para a veiculação de posições efetivamente antagônicas. Tem que fazer concessões, entender que temos uma sociedade plural. O papel do governo seria construir esse consenso.
***
Marcos Dantas é professor do Departamento de Comunicação Social da PUC-RJ. Foi Secretário de Educação à Distância do MEC, secretário de Planejamento e Orçamento do Ministério das Comunicações, representante do Poder Executivo no Conselho Consultivo da Anatel, representante do MEC no Conselho Deliberativo e no Comitê Gestor do Programa TV Digital, representante do governo no Comitê Gestor da Internet-Brasil.
RETIRADO DO SITE www.observatoriodaimprensa.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário